sábado, 22 de agosto de 2009

MINO CARTA: A FARSA DE LINA VIEIRA

À ficção, sempre

21/08/2009 16:43:36

Mino Carta, na Carta Capital

A bem de razoável sossego entre o fígado e a alma, há muitos anos evito a leitura da imprensa nativa. Há, porém, quem me informe a respeito dos fatos, bem como das peças de humorismo semeadas ao longo das páginas dos jornalões, algumas representadas pelos editoriais. Estas não deixo escapar.

Terça 18 coube ao primeiro editorial da Folha de S.Paulo precipitar minha diversão. Assunto: a situação dos pré-candidatos às eleições de 2010 na pesquisa Datafolha, a registrar que Dilma Rousseff, “a aspirante inventada por Lula”, estacionou em 16%. E veio o momento da hilaridade com as linhas finais, quando o editorialista vaticina “a retomada da frenética fanfarra eleitoral em torno da ministra Dilma Rousseff, sob os mais variados pretextos”.

Ouço os trombones, as tubas, os tambores, e encaro as manchetes das primeiras páginas dos jornalões de quarta 19. Fanfarras eleitorais são sempre a favor ou contra. A ex-secretária da Receita Federal dona Lina Vieira ganhou fotos rasgadas e a concorde glorificação de seu desafio à ministra da Casa Civil e ao próprio presidente da República, que a convidara a exibir sua agenda para provar o célebre encontro. Segundo Folha e Globo, diante da Comissão de Constituição e Justiça do Senado dona Lina disse ter sido submetida a “ingerência desnecessária e descabida”, enquanto, segundo o Estado, o pedido de dona Dilma para “agilizar” o processo Sarney foi simplesmente “incabível”.

O depoimento da ex-secretária foi oferecido à visão do Brasil pela televisão. As manchetes e respectivas chamadas das primeiras páginas não correspondem, no entanto, ao que se viu, para o pasmo dos telespectadores, entre os quais nos colocamos. Resta o esforço patético de transformar dona Lina em misto de diva e heroína, e de construir para dona Dilma a fama de mentirosa. Ao clamor da fanfarra, tal é o edito da mídia nativa, o decreto, na óbvia, desbragada demonstração das manhas midiáticas e do pentagrama de quem, de fato, dirige a banda. Ao menos, a do contra.

Não cabe aqui entrar em pormenores, reservados a texto específico na seção Seu País. Limito-me a buscar incentivos, impulsos, patrocínios ao bom humor, proporcionados de graça por algumas passagens dos nossos jornalões. Por exemplo, pela campanha do Estadão contra certas façanhas imobiliárias do senador José Sarney.

O Zé nacional, como diriam os franceses, é figura muito simpática. Falo do indivíduo, o bom contador de histórias e seresteiro inspirado. Isto vale para quem o conhece bem, na intimidade. Parece, contudo, que somente agora os barões midiáticos descobriram o senhor feudal e o político oportunista, o serviçal da ditadura e o tíbio presidente que ganhou o quinto ano de mandato no grito. O então ministro do Exército, o inolvidável general Leônidas, tinha voz de barítono.

Pois é, o general Leônidas, grande amigo dos senhores globais, como também o era, naquele tempo, o próprio presidente, cujo ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, empenhava-se a fundo para embelezar, digamos assim, a Vênus Platinada.

Já o Estadão, que compartilhou com Sarney a fé udenista, encasqueta nestes dias com certas propriedades do ex-presidente, entre elas um apartamento paulistano em outros tempos habitado por um filho, então estudante universitário em São Paulo. Sarney declara em plenário que o apartamento tem 85 metros quadrados de área útil, o jornal clama: mentira! Pois o imóvel tem 112 metros quadrados. Há limites para tamanho espanto? Quanto a mim, padeço de outros espantos.

Aos meus perplexos botões, pergunto: que passa entre o fígado e a alma (a eterna área miasmática) de um titular de carteirinha de jornalista na hora de sujeitar-se ao ridículo para obedecer à vontade do patrão? Ou de esquecer a verdade factual para dedicar-se à ficção, imaginosa, porém daninha, e conformada aos desígnios dos predadores? Ora, daninha... Por duas razões. Primeira, pois nega a profissão de fé jornalística. Segunda, porque não aproveita ao gênero humano e à cidadania nacional. Ou não seria o caso de preocupar-se com o gênero humano e a cidadania nacional?

Penso naqueles que se prestam ao jogo destes mesmos barões, prontos outrora, por exemplo, a implorar a intervenção dos seus gendarmes para desfechar o golpe de 1964. E também naqueles que chamaram de revolução um regime disposto às mais hediondas violências em nome dos interesses da exígua minoria privilegiada e que tranquilamente aceitaram, quando não celebraram, a derrota das Diretas Já. E ainda naqueles que desde 1989 manobram, cada qual dentro do seu espaço, contra representante autorizado e convincente da maioria acuada, aturdida, basicamente infeliz.

Que vai pelas entranhas destas figuras? Até onde chega o servilismo? Até onde se dobra a genuflexão? Só mesmo a escrita dos grandes pesquisadores d’alma para expor tanta vileza. E noutro dia recordei Nelson Rodrigues, foi quando me deparei com o olhar de Fernando Collor, a invectivar contra Pedro Simon. Eis aí, murmurei aos costumeiros, inevitáveis botões, ao descrever os olhos rútilos (rútilo, adjetivo perfeito) do cafajeste Palhares enquanto observava o andar da cunhada, Nelson Rodrigues já profetizava o caçador de marajás.

A miséria moral dos sabujos da mídia está escrita em algum canto, e tenho a definitiva certeza de que Dante não os omitiu da lista dos condenados. Só resta investigar qual seria, exatamente, a bolgia a eles destinada. A dos mentirosos, onde aliás estaciona Ulisses, o Odisseu, por causa do inesquecível cavalo de madeira, é recanto aprazível demais para a turma.

Cidadãos comuns imaginam o óbvio para explicar quem se curva, a partir da crença de que, na origem, havia uma fé. Um sonho, ou uma ambição, a sombra de um propósito respeitável, de um desenho ético. Quem sabe não houvesse. Digamos, porém, que sim: havia. E se for, por que foi traído? Daí o óbvio: esmigalha-se o sonho em nome do alpinismo carreirístico. E se, de supetão, você se convencesse, até a medula, que o patrão é irretorquível dono da verdade?

Não excluo a possibilidade de que haja entre os meus colegas convictos, sinceros partícipes das visões patronais. Antes estavam na contramão do empregador, de súbito, ou aos poucos, soçobraram diante da luz que os cegava, como Saulo a caminho de Damasco. Creio que para descrever situações deste alcance seria preciso convocar Dostoievski. Donde, abstenho-me de prosseguir. Admito, entretanto, a chance da simbiose. Por exemplo: o doutor Roberto (Marinho, e quem mais?) acreditou cegamente na funcionária Miriam Leitão quando, à sombra da campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso em 1998, afirmava em sua coluna que o Real era intocável por direito divino e, portanto, fernandista.

Trata-se de um episódio antigo. Agora o assunto é outro, na praça se estabelece a fanfarra. Nem por isso nos livramos da mesmice. Ela mesma, no entanto, perde peso e valor. De comédia se tornou farsa, agora é ópera-bufa, alcançará a bolha de sabão, e sem razão para o mais pálido sorriso. A mídia, tadinha, por mais óbvia, não consegue entender a obviedade. Ela já não chega onde pretende, é arquiteta de factoides.

Não me canso de repetir: o Brasil é o único país do mundo que conheço onde os jornalistas chamam o patrão de colega e o sindicato até se prontifica a entregar-lhe a carteirinha.

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